sexta-feira, 24 de outubro de 2014

O BÊBADO E A EQUILIBRISTA

Eram jovens e felizes. Corriam o mundo em aventuras juntos, pouco preocupados com a ditadura militar que os cercava, ou com as dificuldades que havia com o início da vida adulta. Queriam se amar na praia, ouvindo as ondas e sob o luar.

Ela, uma moça simples mas apaixonada, daquelas que largariam tudo pelo amor. Ele, um rapaz bonito e galanteador, que dificilmente se envolveria em algo que durasse mais que seu dinheiro. Apesar de tão diferentes, se uniram em desejos opostos, mas explosivos. O que deveria ter sido uma semana, virou um mês, depois um ano. E, assim, nestas indas e vindas, se amaram por cinco anos. Até que ela cansou.

Ela decidiu que viver daquela forma, sem certeza de um futuro, não era sua melhor opção. Afastou-se dele, apesar dos sentimentos, e criou um caminho em que jamais o envolveu. Conheceu um novo homem. Casou, foi mãe. Construiu uma família serena, criou bem os filhos, que viraram sua fortaleza.

Ele seguiu a boemia. Continuou a se apaixonar por uma mulher diferente a cada dia, em festas, praias, noitadas. Chegava tarde demais para acordar no dia seguinte e estudar. Trabalhava quando não tinha outra escolha. Mal via os pais e, assim, soube apenas no dia seguinte quando o pai faleceu. A situação em casa ficou difícil: ele deveria ter assumido os cuidados com gastos, mas continuou a se divertir mais do que podia.

O tempo passou. Após 30 anos, o casamento dela desabou. Separou-se do marido, mas continuou morando com os filhos, com quem dividia sua felicidade. Já a vida dele estabilizou: viu-se obrigado a encontrar um emprego qualquer, e ali seguiu, com menor noitadas que antes.

Ele adoeceu. Teve tuberculose, mas foi tratado para tal. Emagreceu muito, ficou fraco. Melhorou com os remédios. Ela adoeceu. Entrou em depressão, mas foi tratada para tal. Perdeu peso, ficou mais sensível que jamais imaginou. Melhorou com o apoio dos filhos.

Numa noite, dessas em que nunca se imaginaria a ironia do destino, eles se reencontraram em uma festa. Os trinta anos não foram o suficiente para que deixassem de reconhecer o olhar um do outro. Ele se aproximou e, com o mesmo sorriso de galanteio, disse o quanto ela não havia mudado e o quanto estava bonita. Ela sentiu anos e anos de sentimentos guardados explodir. E, naquela mesma noite, relembraram por que amar sob o luar era inesquecível.

Aquela noite se tornou várias. Mas, enquanto na juventude era louvável apostar num amor sem freios, na meia-idade ela se encontrou diante de várias barreiras. A começar pelos filhos, que se colocaram contra, principalmente porque aquele homem não tinha objetivos de vida, não construíra nada.

Assim, se afastaram mais uma vez, embora continuassem a se falar por telefonemas saudosos. E também outra vez, ele adoeceu. Foi internado no meu hospital, onde descobrimos que era portador do vírus da imunodeficiência humana, e estava com várias doenças oportunistas por conta disso. Durante o tempo em que esteve internado, sendo tratado, ela reapareceu para visitá-lo. Revelou a nós todos que enfrentaria o mundo inteiro por aquele homem que, finalmente, aceitou que amava.

Quando ela descobriu a doença dele, porém, sentiu medo. Decidiu que merecia realizar exames. E confirmou: ela também estava infectada pelo HIV. Quando anunciei, ela quase chorou, mas controlou as emoções e perguntou "O que eu faço agora? Como vai ser minha vida?". Expliquei que, hoje, ter AIDS não significa interromper, mas reaprender a lidar com o próprio corpo. Ela perguntou então "E o amor, como lidar com o amor depois disso? Como vou me sentir capaz de amar alguém? Ninguém vai me querer mais". E declarou que, a partir daquele momento, estar perto do homem que sempre amou lhe causaria uma repulsa que ela jamais pudera imaginar.

Dias depois, ele faleceu. Ela chorou por tanto tempo quanto longas eram suas memórias. Ao final, declarou que, jamais, doença alguma diminuiria o amor que tivera por aquele homem. E que se trataria, ficaria saudável, seria feliz de novo, amaria de novo, em respeito ao quanto ele a ensinou a sorrir.


O BÊBADO E A EQUILIBRISTA é uma música de Aldir Blanc

quinta-feira, 24 de abril de 2014

CACHIMBO DA PAZ

Ele era um garoto muito especial. Amava bastante os pais e sempre quis orgulhar bastante a família. Como seu avô, o grande exemplo de todos, era militar da reserva, decidiu que seguiria seus passos. Dessa forma, alistou-se e, ao final de 2012, conseguiu êxito no que queria: entrou para o exército.

A alegria de todos teve tempo limite. Antes mesmo de o garoto concluir a fase de recruta militar, sua mãe caiu doente. Não demorou para que os médicos culpassem os anos de tabagismo. Por conta deles, ela estava gravemente enferma, com um câncer no pulmão, que foi tomando cada pouquinho de força. E, junto dela, o garoto e seu pai iam desabando. Até o momento em que, meses depois, a mãe faleceu.

A dor foi imensa. O garoto procurou formas de se livrar daquele sofrimento: bebeu muito, experimentou maconha, tragou cigarros. Passou noites em claro, na rua, usando qualquer desculpa para não voltar para casa e ver a o lado vazio da cama dos pais. Acabou que sua melhor fuga foi o trabalho. Tornou-se um soldado honroso, trabalhando sem descanso em prol da pátria.

Pensava na mãe em cada manhã e cada noite, e era a força do amor que ele e o pai sentiam, e que recebiam de alguma forma em troca, que lhe dava disposição para seguir adiante. Para buscar sempre o melhor de si e das pessoas. Não se deixou perder em vícios ou medos.

Numa tarde comum, após um acesso de tosse, seu pai cuspiu sangue. Procuraram a emergência onde eu trabalhava, e ali se suspeitou de tuberculose. O pai não tinha tanta tosse, nem tanta febre, mas a primeira coisa que todos imaginaram por conta da história, do raio X, da carga imensa de cigarros que o homem fumara. Ele realizou vários exames, e ao final percebemos que ele felizmente não tinha tuberculose.

Mas antes tivesse. Depois de uma tomografia e uma biópsia, nos demos conta que o que estava reservado para aquele pai era muito pior. E o que estava reservado para aquele garoto era muito mais doloroso. O pai também estava com câncer de pulmão, assim como a mãe tivera.

Difícil seria para aquele garoto de menos de 20 anos entender como uma coisa tão pequena, tão frágil, como o cigarro, poderia ser um assassino tão silencioso para sua família.



CACHIMBO DA PAZ é uma música de Gabriel, o Pensador