A garota estava sentada na maca, com lágrimas nos olhos e abraçando as pernas. Me apresentei como o médico que cuidaria dela e informei que estava ali para ajudá-la e não para criticá-la. Expliquei a situação em que ela se encontrava, tendo ingerido alguma coisa que não nos dizia, e dos riscos que corria em piorar e acabar morrendo, sem que pudéssemos fazer algo.
"Eu quero morrer" foram as palavras que ela me devolveu.
Sentei ao lado dela, deixei de lado o estetoscópio e perguntei o motivo daquela decisão, vinda de uma garota de 16 anos, com tantas coisas boas ainda para viver. Ela apenas continuou a chorar, em silêncio. Contei que os pais estavam do lado de fora, desesperados, e quis saber se era por conta deles. Ela me olhou com um ar de desprezo e disse:
"Minha vida é uma merda. Eu não presto pra nada. Então, é melhor morrer"
Nos encaramos por alguns segundinhos. Levantei e abri a porta da sala vermelha, onde ela estava. Do lado de fora, seus pais logo vieram, aflitos, perguntando como ela estava. Disse que esperassem um pouco e voltei a fechar a porta. Sentei ao lado dela e perguntei como uma pessoa inútil pode causar tanto desespero na família.
"Eles passaram o dia brigando comigo e com minha irmã. Eles não estão preocupados se vou morrer. Eu sou inútil, e quero ao menos poder decidir sobre minha morte"
Compreendendo a situação, eu ponderei:
"Você acha que vai resolver alguma coisa se morrer? Se você acha que é inútil, morrer não vai te tornar uma pessoa mais útil. Morrer vai cortar qualquer chance de você se sentir importante. Apenas viva você vai ter a oportunidade de crescer, de melhorar, de sentir que é útil. Mas, pra isso, eu preciso que você me diga o que tomou"
Ela não repondeu, olhando para o chão. Sem saída, eu disse:
"Eles estão preocupados com você porque te amam. Você tomou uma decisão muito ruim, baseada numa idéia boba de que não gostam de você e de que você não importa para eles. Só que você está errada. E, para garantir que você perceba isso, teremos que fazer algumas coisas desagradáveis e dolorosas. Mas tudo pelo seu bem"
Quando estava para sair da sala vermelha, ela murmurou:
"Você pode fazer o que quiser, pode me salvar... Não tem problema. Amanhã eu tento me matar de novo"
Orientei minha equipe a usar um sedativo nela, para que não atrapalhasse. Fizemos lavagem gástrica e utlizamos carvão ativado para evitar a ingestão do produto. Logo quando começamos a lavagem gástrica, o pai veio nervoso me explicar que uma tia encontrou dois frascos vazios de veneno de carrapato na mochila dela. De fato, com a lavagem gástrica conseguimos tirar um volume enorme de veneno do estômago da garota.
Depois dos procedimentos iniciais, mantivemos a menina na sala de recuperação, sob vigilância constante. Ela não chegou a dormir por completo, mas ficou bem mais calma e colaborativa. Algumas horas depois do atendimento inicial, fui reavaliá-la. Ela estava desperta e ainda tinha lágrimas nos olhos.
Mais uma vez, sentei ao seu lado. Ela permaneceu em silêncio. Eu então falei:
"A grande verdade é que você não queria morrer. Quem quer morrer não toma dois vidros de veneno e corre pra família pra dizer o que fez. A pessoa se tranca num banheiro, bebe veneno e se esconde do mundo pra morrer na solidão. O que você queria era chamar a atenção de seus pais, mostrar o que eles podem perder se não mudarem. Nesse ponto, você conseguiu. Você vai sair viva disso, vai ficar bem e não fará mais nada, porque sabe que conseguiu"
A garota começou a chorar de verdade. Segurei a mão dela por alguns segundos enquanto chorava e, quando se acalmou mais, a deixei descansar na sala de recuperação, com a companhia da mãe. Deixei o plantão, na manhã seguinte, orientando os colegas a tentarem transferi-la para receber cuidados de psiquiatra, pela possibilidade de repetir o ato. Soube, contudo, que ela acabou recebendo alta ainda naquela manhã, a pedido dos pais, que garantiram maiores cuidados a partir de então.
Passei uma semana inteira nervoso com a chance de receber uma notícia ruim sobre a garota. No plantão seguinte, porém, me surpreendi com a presença da mãe dela no plant
ão de emergência, que tinha ido se consultar com a pressão alta.
Ao me ver, ela agradeceu bastante tudo que havia sido feito e explicou que a garota estava bem, mais animada e já havia voltado para as ativididades habituais. E me contou que ela prometera não fazer mais aquilo depois de uma longa conversa com os pais. Ela prometeu um dia levar a garota para que eu a visse bem e em paz. Até hoje não o fez, mas tenho certeza que a garota não repetiu mais esse erro.
SUAVE VENENO é uma música de Nana Caymmi