quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

SUAVE VENENO

Fui chamado às pressas na emergência para avaliar uma garota de 16 anos, levada pela família, que parecia ter ingerido algum produto em grande quantidade, mas ninguém sabia qual. Ela estava um pouco sonolenta, mas de resto parecia bem. O grande problema é que se recusava a falar qualquer coisa. Abandonei os atendimentos habituais da emergência para passar alguns minutos com ela e tentar entender o que acontecia.

A garota estava sentada na maca, com lágrimas nos olhos e abraçando as pernas. Me apresentei como o médico que cuidaria dela e informei que estava ali para ajudá-la e não para criticá-la. Expliquei a situação em que ela se encontrava, tendo ingerido alguma coisa que não nos dizia, e dos riscos que corria em piorar e acabar morrendo, sem que pudéssemos fazer algo.

"Eu quero morrer" foram as palavras que ela me devolveu.

Sentei ao lado dela, deixei de lado o estetoscópio e perguntei o motivo daquela decisão, vinda de uma garota de 16 anos, com tantas coisas boas ainda para viver. Ela apenas continuou a chorar, em silêncio. Contei que os pais estavam do lado de fora, desesperados, e quis saber se era por conta deles. Ela me olhou com um ar de desprezo e disse:

"Minha vida é uma merda. Eu não presto pra nada. Então, é melhor morrer"

Nos encaramos por alguns segundinhos. Levantei e abri a porta da sala vermelha, onde ela estava. Do lado de fora, seus pais logo vieram, aflitos, perguntando como ela estava. Disse que esperassem um pouco e voltei a fechar a porta. Sentei ao lado dela e perguntei como uma pessoa inútil pode causar tanto desespero na família.

"Eles passaram o dia brigando comigo e com minha irmã. Eles não estão preocupados se vou morrer. Eu sou inútil, e quero ao menos poder decidir sobre minha morte"

Compreendendo a situação, eu ponderei:

"Você acha que vai resolver alguma coisa se morrer? Se você acha que é inútil, morrer não vai te tornar uma pessoa mais útil. Morrer vai cortar qualquer chance de você se sentir importante. Apenas viva você vai ter a oportunidade de crescer, de melhorar, de sentir que é útil. Mas, pra isso, eu preciso que você me diga o que tomou"

Ela não repondeu, olhando para o chão. Sem saída, eu disse:

"Eles estão preocupados com você porque te amam. Você tomou uma decisão muito ruim, baseada numa idéia boba de que não gostam de você e de que você não importa para eles. Só que você está errada. E, para garantir que você perceba isso, teremos que fazer algumas coisas desagradáveis e dolorosas. Mas tudo pelo seu bem"

Quando estava para sair da sala vermelha, ela murmurou:

"Você pode fazer o que quiser, pode me salvar... Não tem problema. Amanhã eu tento me matar de novo"

Orientei minha equipe a usar um sedativo nela, para que não atrapalhasse. Fizemos lavagem gástrica e utlizamos carvão ativado para evitar a ingestão do produto. Logo quando começamos a lavagem gástrica, o pai veio nervoso me explicar que uma tia encontrou dois frascos vazios de veneno de carrapato na mochila dela. De fato, com a lavagem gástrica conseguimos tirar um volume enorme de veneno do estômago da garota.

Depois dos procedimentos iniciais, mantivemos a menina na sala de recuperação, sob vigilância constante. Ela não chegou a dormir por completo, mas ficou bem mais calma e colaborativa. Algumas horas depois do atendimento inicial, fui reavaliá-la. Ela estava desperta e ainda tinha lágrimas nos olhos.

Mais uma vez, sentei ao seu lado. Ela permaneceu em silêncio. Eu então falei:

"A grande verdade é que você não queria morrer. Quem quer morrer não toma dois vidros de veneno e corre pra família pra dizer o que fez. A pessoa se tranca num banheiro, bebe veneno e se esconde do mundo pra morrer na solidão. O que você queria era chamar a atenção de seus pais, mostrar o que eles podem perder se não mudarem. Nesse ponto, você conseguiu. Você vai sair viva disso, vai ficar bem e não fará mais nada, porque sabe que conseguiu"

A garota começou a chorar de verdade. Segurei a mão dela por alguns segundos enquanto chorava e, quando se acalmou mais, a deixei descansar na sala de recuperação, com a companhia da mãe. Deixei o plantão, na manhã seguinte, orientando os colegas a tentarem transferi-la para receber cuidados de psiquiatra, pela possibilidade de repetir o ato. Soube, contudo, que ela acabou recebendo alta ainda naquela manhã, a pedido dos pais, que garantiram maiores cuidados a partir de então.

Passei uma semana inteira nervoso com a chance de receber uma notícia ruim sobre a garota. No plantão seguinte, porém, me surpreendi com a presença da mãe dela no plant
ão de emergência, que tinha ido se consultar com a pressão alta.

Ao me ver, ela agradeceu bastante tudo que havia sido feito e explicou que a garota estava bem, mais animada e já havia voltado para as ativididades habituais. E me contou que ela prometera não fazer mais aquilo depois de uma longa conversa com os pais. Ela prometeu um dia levar a garota para que eu a visse bem e em paz. Até hoje não o fez, mas tenho certeza que a garota não repetiu mais esse erro.


SUAVE VENENO é uma música de Nana Caymmi

4 comentários:

  1. Impressionante como as pessoas se perdem com facilidade. Belo relato.. emocionante.

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  2. Me emocionou bastante, pois já vivi algo parecido! Médicos por opção do coração, são anjos enviados por Deus. Parabéns!!!

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  3. Me vi nessa garota, só não cheguei a parar no hospital.Mas semana passada tive meu filho internado, e fui muito bem tratada pelo médico do plantão, o que me causou admiração, pois ele estava a 2 dias dentro do hospital, sei o qt isso pode ser estressante.Essa menina foi abençoada pelo atendimento dese médico com coração enorme *.*

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  4. Que Deus Pai te abençoe sempre mantendo em vc esse coração bom, esse SER HUMANO especial que és.Que o dia a dia do seu trabalho e os acontecimentos na sua profissão não te façam frio de coração, mas que te mantenha sempre a serenidade e a fé...Assim quando chegar o dia em que vc vier a perder um paciente, que seja pela vontade de Deus e não por falta de atenção ou descaso. Que Deus ilumine sempre a sua cabeça, o seu coração e as suas mão.
    Parabéns. Yancka.

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