quinta-feira, 10 de novembro de 2011

DEUS PROMETEU

Aquele homem tinha o visual de um ermitão. Mantinha sempre uma barba longa, usava roupas desajeitadas e sujas e só andava com uma bengala pra apoiar sua dor. Era por essa dor que vinha diária e incansavelmente à emergência, apenas para receber medicamentos que controlassem o que sentia. E, de acordo com o que ele mesmo resmungava, nada aliviava por completo.

Não tinha pressão alta, diabete ou qualquer outra coisa, a não ser bastantes varizes nas pernas, como boa parte da população. Em um desafortunado dia, uma das maiores varizes de sua perna resolveu estourar. Ele foi operado e a situação parecia controlada, mas seguiu com infecção no local da variz e erisipela. Após o tratamento da infecção, restou para ele uma grande cicatriz na forma de uma úlcera varicosa.

Além do problema estético, essa úlcera lhe rendeu uma dor crônica, diária, que não aliviava com quase nenhum analgésico. Por conta disso, ia diariamente à mesma emergência para exigir analgesia, que lhe dava alívio por algumas horas, o bastante para dormir. E, no dia seguinte, voltava para mais. Não demorou a ser conhecido por todos do hospital. E, nesse caminho, logo passou a ser considerado como um viciado, não apenas pela forma como se vestia, mas pelas exigências grosseiras de medicamentos fortes.

Sempre que chegava um novo médico na emergência, a situação se repetia: o médico se recusava a passar de cara análgesicos que viciam, e o homem irritado gritava que não era um paciente qualquer. Independente de ser ou não um viciado, os medicamentos que aliviavam um pouco da dor eram prescritos, e ele sempre saiu satisfeito.

Nunca brigamos, e ele sempre me tratou bem. Geralmente quando chegava na emergência do meu plantão, ia direto me procurar pra eu lhe passar logo as medicações. No papel de médico, nunca considerei justo julgar se a dor era real ou supervalorizada, afinal só ele era capaz de senti-la. E não havia como avaliar efeito placebo pois nenhum remédio o fazia melhorar por completo.

Certa manhã, quando ele chegou para a dose diária de opiáceos, estava mais entristecido que o habitual. Questionei isso, e ele explicou que a dor estava insuportável, e que era um martírio viver daquela forma, com uma dor que nunca teria fim. E falou o quanto era ruim ter que estar num hospital diariamente, ainda mais encarando os olhares duvidosos dos profissionais.

Quando se levantou para ir embora, ele me encarou com um olhar franco e disse:

"Um sobrinho meu de 9 anos comparou minha vida com a de um personagem grego. Prometeus. Aquele que foi acorrentado e exposto aos corvos, que comiam todo dia um pedaço do seu fígado. Mas o maldito do fígado regenerava diariamente, e lá vinham de novo os corvos pra comer mais, lhe causando uma dor eterna. Eu estou aqui, doutor, apenas para assustar meus corvos"

Eu nunca mais duvidei da dor que ele sentia.





DEUS PROMETEU é uma música de Quatro Por Um

2 comentários:

  1. Bem forte a comparação que o garoto fez. Com a infância alienante que se tem hoje, gratificante saber que um menino de 9 anos conhece essas partes da cultura grega. E triste o caso dele... que Zeus abrande a dor desse senhor =/

    ResponderExcluir
  2. Tu agora tem blog eh elton?? Achoq esse moleque jogou god of war :)

    ResponderExcluir