quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

SUAVE VENENO

Fui chamado às pressas na emergência para avaliar uma garota de 16 anos, levada pela família, que parecia ter ingerido algum produto em grande quantidade, mas ninguém sabia qual. Ela estava um pouco sonolenta, mas de resto parecia bem. O grande problema é que se recusava a falar qualquer coisa. Abandonei os atendimentos habituais da emergência para passar alguns minutos com ela e tentar entender o que acontecia.

A garota estava sentada na maca, com lágrimas nos olhos e abraçando as pernas. Me apresentei como o médico que cuidaria dela e informei que estava ali para ajudá-la e não para criticá-la. Expliquei a situação em que ela se encontrava, tendo ingerido alguma coisa que não nos dizia, e dos riscos que corria em piorar e acabar morrendo, sem que pudéssemos fazer algo.

"Eu quero morrer" foram as palavras que ela me devolveu.

Sentei ao lado dela, deixei de lado o estetoscópio e perguntei o motivo daquela decisão, vinda de uma garota de 16 anos, com tantas coisas boas ainda para viver. Ela apenas continuou a chorar, em silêncio. Contei que os pais estavam do lado de fora, desesperados, e quis saber se era por conta deles. Ela me olhou com um ar de desprezo e disse:

"Minha vida é uma merda. Eu não presto pra nada. Então, é melhor morrer"

Nos encaramos por alguns segundinhos. Levantei e abri a porta da sala vermelha, onde ela estava. Do lado de fora, seus pais logo vieram, aflitos, perguntando como ela estava. Disse que esperassem um pouco e voltei a fechar a porta. Sentei ao lado dela e perguntei como uma pessoa inútil pode causar tanto desespero na família.

"Eles passaram o dia brigando comigo e com minha irmã. Eles não estão preocupados se vou morrer. Eu sou inútil, e quero ao menos poder decidir sobre minha morte"

Compreendendo a situação, eu ponderei:

"Você acha que vai resolver alguma coisa se morrer? Se você acha que é inútil, morrer não vai te tornar uma pessoa mais útil. Morrer vai cortar qualquer chance de você se sentir importante. Apenas viva você vai ter a oportunidade de crescer, de melhorar, de sentir que é útil. Mas, pra isso, eu preciso que você me diga o que tomou"

Ela não repondeu, olhando para o chão. Sem saída, eu disse:

"Eles estão preocupados com você porque te amam. Você tomou uma decisão muito ruim, baseada numa idéia boba de que não gostam de você e de que você não importa para eles. Só que você está errada. E, para garantir que você perceba isso, teremos que fazer algumas coisas desagradáveis e dolorosas. Mas tudo pelo seu bem"

Quando estava para sair da sala vermelha, ela murmurou:

"Você pode fazer o que quiser, pode me salvar... Não tem problema. Amanhã eu tento me matar de novo"

Orientei minha equipe a usar um sedativo nela, para que não atrapalhasse. Fizemos lavagem gástrica e utlizamos carvão ativado para evitar a ingestão do produto. Logo quando começamos a lavagem gástrica, o pai veio nervoso me explicar que uma tia encontrou dois frascos vazios de veneno de carrapato na mochila dela. De fato, com a lavagem gástrica conseguimos tirar um volume enorme de veneno do estômago da garota.

Depois dos procedimentos iniciais, mantivemos a menina na sala de recuperação, sob vigilância constante. Ela não chegou a dormir por completo, mas ficou bem mais calma e colaborativa. Algumas horas depois do atendimento inicial, fui reavaliá-la. Ela estava desperta e ainda tinha lágrimas nos olhos.

Mais uma vez, sentei ao seu lado. Ela permaneceu em silêncio. Eu então falei:

"A grande verdade é que você não queria morrer. Quem quer morrer não toma dois vidros de veneno e corre pra família pra dizer o que fez. A pessoa se tranca num banheiro, bebe veneno e se esconde do mundo pra morrer na solidão. O que você queria era chamar a atenção de seus pais, mostrar o que eles podem perder se não mudarem. Nesse ponto, você conseguiu. Você vai sair viva disso, vai ficar bem e não fará mais nada, porque sabe que conseguiu"

A garota começou a chorar de verdade. Segurei a mão dela por alguns segundos enquanto chorava e, quando se acalmou mais, a deixei descansar na sala de recuperação, com a companhia da mãe. Deixei o plantão, na manhã seguinte, orientando os colegas a tentarem transferi-la para receber cuidados de psiquiatra, pela possibilidade de repetir o ato. Soube, contudo, que ela acabou recebendo alta ainda naquela manhã, a pedido dos pais, que garantiram maiores cuidados a partir de então.

Passei uma semana inteira nervoso com a chance de receber uma notícia ruim sobre a garota. No plantão seguinte, porém, me surpreendi com a presença da mãe dela no plant
ão de emergência, que tinha ido se consultar com a pressão alta.

Ao me ver, ela agradeceu bastante tudo que havia sido feito e explicou que a garota estava bem, mais animada e já havia voltado para as ativididades habituais. E me contou que ela prometera não fazer mais aquilo depois de uma longa conversa com os pais. Ela prometeu um dia levar a garota para que eu a visse bem e em paz. Até hoje não o fez, mas tenho certeza que a garota não repetiu mais esse erro.


SUAVE VENENO é uma música de Nana Caymmi

sábado, 19 de novembro de 2011

JARDIM DA INOCÊNCIA

Uma garota de 9 anos chegou à emergência pediátrica sentindo fortes dores na barriga, que haviam começado há poucas horas. Era trazida pela mãe e pelo padrasto, que acreditavam se tratar de alguma comida estragada causando infecção intestinal. Mas ela não tinha diarreia.

Depois dos cuidados iniciais, quando estabilizamos a garota, nossa preocupação passou a ser entender o que estava acontecendo. Pedimos um exame de sangue, que não veio com alterações. Questionamos sobre diarréia, prisão de ventre, ardência na urina, entre tantas outras coisas. De tudo, além da dor, a garota só estava vomitando bastante.

Concordamos de início com o pensamento da família sobre o alimento estragado. Medicamos para aliviar as dores e mantivemos em observação. O problema é que, duas horas depois, a dor não havia aliviado em nada, e até tinha piorado. A garota gemia bastante, reclamando que o "pé da barriga" estava a ponto de explodir. Então, questionamos à mãe se a garota já havia menstruado, e ela não soube responder. Pensando na chance de ser algo ginecológico, decidimos realizar um exame superficial.

No momento do exame ginecológico, a garota ficou agitada, sem querer retirar a calcinha. Após muitos pedidos, e com a companhia carinhosa da mãe, ela aceitou expor sua intimidade. A maior surpresa de todos foi quando apareceu sangue na calcinha e na vagina. A preocupação geral foi imediatada. A médica tentou continuar o exame, mas a garota voltou a atrapalhar, nervosa, e preferimos parar.

Submetemos a menina a uma ultrassonografia. Quando o resultado chegou, todos foram nocauteados de surpresa. A menina estava grávida de dois meses. O que explicava tanta dor era o fato de ser uma gestação tubária. O embrião tinha se instalado em uma das trompas, o que inviabilizaria a gravidez. Por sorte, a trompa ainda não havia rompido, do contrário a garota estaria numa situação mais grave.

Ela foi submetida a uma cirurgia, com retirada da trompa e do feto ectópico. Após resolvida a situação de saúde da menina, ficou a grande questão: quem havia feito isso. O primeiro pensamento, sem dúvida, recaiu sobre o padrasto. Ao saberem do que a menina tinha, inclusive, a própria mãe desconfiou do marido. O homem, porém, afirmou jamais ter tocado na garota com esse tipo de intenção. Disse que a amava como filha.

Mesmo sob toda a negativa dele, o padrasto foi levado para maiores esclarecimentos e permaneceu como principal suspeito. O pai da menina, que não morava com ela, também foi chamado para prestar depoimento. Não conseguiram definir com exatidão quem deveria ser o culpado,  continuaram acreditando no envolvimento do padrasto.

A menina permanecera quieta sobre isso o tempo todo. Não falava nada quando questionada, fingia que nada havia acontecido. Continuava a tratar bem o pai e o padrasto. No dia da alta, porém, ela entrou em crise de histeria e se recusou a deixar o o hospital. A mãe não entendeu o motivo da reação. A garota não parava de gritar e dizer que queria ficar no hospital.

Por fim, a garota disse para a mãe que, se fosse para casa, o homem estaria lá para esperá-la. Naquele momento, a mãe se deu conta. Um de seus vizinhos, pai de duas crianças, era muito carinhoso com a menina, sempre aparecia na casa para visitá-los. E já tinha acontecido de ficar tomando conta da filha duas ou três vezes. Só podia ser ele.

Quando a polícia interrogou o homem, ele negou. Mas, depois que usaram o truque de fingir que a garota havia morrido por conta da gravidez, o vizinho não suportou a culpa e admitiu o que havia feito. Tinha sido ele quem abusara sexualmente da garota. Ele foi imediatamente acusado do crime, e até seus filhos tiveram de passar por exames médicos para certificar que não sofriam também abuso.

A menina continuou reticente de voltar para casa, mas recebeu alta hospitalar. Apesar de fisicamente bem, com a doença orgânica resolvida, seria difícil curar o tamanho dano que havia sido provocado em sua mente.


JARDIM DA INOCÊNCIA é uma música de Paulo César Baruk

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

DEUS PROMETEU

Aquele homem tinha o visual de um ermitão. Mantinha sempre uma barba longa, usava roupas desajeitadas e sujas e só andava com uma bengala pra apoiar sua dor. Era por essa dor que vinha diária e incansavelmente à emergência, apenas para receber medicamentos que controlassem o que sentia. E, de acordo com o que ele mesmo resmungava, nada aliviava por completo.

Não tinha pressão alta, diabete ou qualquer outra coisa, a não ser bastantes varizes nas pernas, como boa parte da população. Em um desafortunado dia, uma das maiores varizes de sua perna resolveu estourar. Ele foi operado e a situação parecia controlada, mas seguiu com infecção no local da variz e erisipela. Após o tratamento da infecção, restou para ele uma grande cicatriz na forma de uma úlcera varicosa.

Além do problema estético, essa úlcera lhe rendeu uma dor crônica, diária, que não aliviava com quase nenhum analgésico. Por conta disso, ia diariamente à mesma emergência para exigir analgesia, que lhe dava alívio por algumas horas, o bastante para dormir. E, no dia seguinte, voltava para mais. Não demorou a ser conhecido por todos do hospital. E, nesse caminho, logo passou a ser considerado como um viciado, não apenas pela forma como se vestia, mas pelas exigências grosseiras de medicamentos fortes.

Sempre que chegava um novo médico na emergência, a situação se repetia: o médico se recusava a passar de cara análgesicos que viciam, e o homem irritado gritava que não era um paciente qualquer. Independente de ser ou não um viciado, os medicamentos que aliviavam um pouco da dor eram prescritos, e ele sempre saiu satisfeito.

Nunca brigamos, e ele sempre me tratou bem. Geralmente quando chegava na emergência do meu plantão, ia direto me procurar pra eu lhe passar logo as medicações. No papel de médico, nunca considerei justo julgar se a dor era real ou supervalorizada, afinal só ele era capaz de senti-la. E não havia como avaliar efeito placebo pois nenhum remédio o fazia melhorar por completo.

Certa manhã, quando ele chegou para a dose diária de opiáceos, estava mais entristecido que o habitual. Questionei isso, e ele explicou que a dor estava insuportável, e que era um martírio viver daquela forma, com uma dor que nunca teria fim. E falou o quanto era ruim ter que estar num hospital diariamente, ainda mais encarando os olhares duvidosos dos profissionais.

Quando se levantou para ir embora, ele me encarou com um olhar franco e disse:

"Um sobrinho meu de 9 anos comparou minha vida com a de um personagem grego. Prometeus. Aquele que foi acorrentado e exposto aos corvos, que comiam todo dia um pedaço do seu fígado. Mas o maldito do fígado regenerava diariamente, e lá vinham de novo os corvos pra comer mais, lhe causando uma dor eterna. Eu estou aqui, doutor, apenas para assustar meus corvos"

Eu nunca mais duvidei da dor que ele sentia.





DEUS PROMETEU é uma música de Quatro Por Um

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A CURA

Durante a noite, foi internada pela emergência pediátrica uma garotinha com história de infecções urinárias de repetição. De acordo com a mãe, a garota estava apresentando uma nova crise, com urina de cheiro ruim, dores abdominais, ardência para urinar. Embora fosse bastante quieta e quase não falasse, a menina estava bem.

Já era sua oitava admissão naquele hospital, para tratamento de infecção urinária. Só naquele ano, já era a terceira. Foi solicitada uma cultura de urina, que mostrou vários germes incomuns na infecção urinária, preocupando bastante a equipe pediátrica. Logo se decidiu investigar o que estaria causando essas infecções de repetição.

A primeira hipótese foi de alguma estrutura malformada nas vias de saída da urina. A garota foi submetida a exames, que comprovaram ser completamente normal. Enquanto isso, o tratamento com o antibiótico estava sendo realizado. Após o quinto dia do antibiótico, foi realizada uma nova cultura de urina. Para nossa surpresa, as bactérias continuavam lá, em grande quantidade.

Pensamos que algo estava errado, talvez na hora de coletar a urina. Foi realizada mais outra cultura de urina, que mostrou o mesmo resultado: várias bactérias, incomuns em infecções urinárias, atacando a bexiga e os rins da menina. Modificamos o antibiótico, já que o primeiro não demonstrou resultado.

No terceiro dia do novo tratamento, foi realizada outra cultura de urina. As estranhas bactérias que apareceram antes ainda estavam lá, como se nenhum tratamento tivesse sido feito. A equipe se reuniu para discutir o que poderia estar acontecendo. A opinião de todos era de que estava acontecendo um erro na coleta da urina, de alguma forma, e estava havendo contaminação.

Decidimos acompanhar a coleta de uma nova cultura de urina. Fui avaliar a coleta, que era realizada com um potinho. A enfermeira responsável fez como das vezes anteriores: entregou o potinho para a mãe, que levava a garota para o banheiro e colhia, de acordo com as orientações. Tudo parecia sem erros. E outra vez a urina estava infectada pelas bactérias.

Tentamos discutir com a mãe o que poderia estar acontecendo, e ela firme em dizer que a filha sempre passava por essa situação. Que não era novidade, e que a equipe estava preocupada porque não conseguia tratar a menina. A agressividade da familiar acabou levantando uma suspeita reversa. Conversei com a enfermeira e pedi que ela mesma realizasse a coleta da urina, sem a interferência materna. Assisti à coleta da urina, feita de forma impecável pela enfermeira.

E a cultura de urina veio sem qualquer bactéria. Para completar nossa suspeita do que estava acontecendo, fingimos pedir uma nova cultura de urina no dia seguinte, para a mãe colher. Durante a coleta, entramos no banheiro e flagramos o exato momento em que a mãe cuspia dentro da urina e mexia com o próprio dedo.

O diagnóstico final foi de uma situação clínica conhecida como Munchausen por Procuração, que ocorre quando um pai ou acompanhante reproduz no filho uma doença que não existe, algumas vezes até alterando o resultado de seus exames, de forma que o filho seja internado ou receba cuidados médicos para a doença inexistente. Existem até relatos de cirurgias feitas em crianças por conta disso.

No caso da menina, ela recebeu alta no mesmo dia, sem qualquer tratamento, e foi imediatamente encaminhada para os cuidados do serviço social, enquanto a mãe era avaliada pela psiquiatria.


A CURA é uma música de Lulu Santos

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

FORÇA ESTRANHA

Ele chegou a primeira vez na emergência como um típico caso de pneumonia. Estava tossindo horrores, sem respirar direito. Tinha fumado a vida toda, e agora o pulmão reclamava de tanta nicotina acumulada. Foi internado por seus oitenta e tantos anos, recebeu oxigênio, tomou antibiótico, e logo estava um pouco melhor. Um pouco.

Também tinha perdido peso. Na tosse vinha um pouco de sangue. Uma investigação começou para definir melhor o que acontecia. Não tardou em mostrar uma grande massa no pulmão, depois revelada como um câncer já bastante avançado.

Mesmo sendo um câncer muito grave, a decisão do oncologista foi investir em uma tentativa de cura ou, pelo menos, controlar a doença. Foram iniciadas sessões de quimioterapia verdadeiramente devastadores, com o intuito de extirpar qualquer célula cancerosa do corpo daquele senhor.

Logo de início, o resultado foi terrível. Além do óbvio desgaste emocional, o corpo trouxe todas as piores reclamações - cabelos sumiram, o peso desabou, vômitos eram constante. Ainda assim, a força de vontade do homem só não era mais inabalável que a fé e o amor de sua família.

Ao longo da quimioterapia, houve duas outras internações por episódios de falta de ar. Apesar disso, a melhora do estado geral dele era evidente, o que animou a todos, em especial os familiares. Em sua última alta, ele sorria animadamente, agradecia à equipe médica e prometia que ia combater a doença com todas as suas capacidades.

Voltou ao hospital um mês depois. A família explicou que ele estava cansando como nunca e, o que era mais preocupante, havia desistido do tratamento. Não aguentava mais as sessões de quimioterapia e implorou que os familiares simplesmente o deixassem morrer sem sofrer com aqueles remédios que só lhe faziam mal. Queria morrer em casa.

Mas isso não aconteceu. Em uma semana, teve de ser internado de urgência. Mal conseguia respirar. A família estava em pânico e implorando que fizéssemos de tudo para salvar o pai. Logo na chegada, conseguimos reverter o quadro com máscara de oxigênio, mas ele deteriorava a cada hora. Então, surgiu o maior dilema médico - até onde investir no paciente?

Ele era um paciente portador de uma doença terminal. Em teoria, não havia sentido investir demais em um paciente como ele. De que adiantaria intubar, usar medicamentos de última geração, ressuscitar em caso de parada, se apenas estaríamos prolongando seu sofrimento? Ainda assim, a nova lei médica exige a participação do paciente e da família nas decisões, e bom senso do profissional pede o mesmo.

No dia seguinte, seu quadro obviamente era pior. Ele sequer estava acordado, mantendo-se em um estado de respiração mínima. A equipe decidiu conversar com a família para tomar uma decisão em conjunto. Havia opções de conduta a se tomar. O paciente poderia ser levado para UTI ou poderia ser deixado na enfermaria junto da família. Poderia ser intubado, ressuscitado em caso de parada; ou poderia ser dado apenas um suporte que aliviasse sua condição até a inevitável hora.

A família, em óbvias lágrimas desesperadas, pediu que não prolongássemos o tempo dele, que não forçássemos seu corpo a ir além dos próprios limites do sofrimento. Por fim, pediram que nós o levássemos para a UTI, pois não se encontravam mais em condições de ajudar o pai, estavam completamente arruinados fisicamente e devastados emocionalmente para lidar com a situação.

Colocamos o paciente na UTI no início da manhã. Ele veio a falecer poucas horas depois, com todo suporte que lhe era possível ser dado, sem medidas extremas. Morreu de forma tranquila, sem dor e com o mínimo de sofrimento que a doença permitia.

A medicina existe com vários propósitos. Alguns acreditam que servimos para salvar a vida das pessoas, outras acham que existimos para curar doenças, e poucos apostam na nossa capacidade de preveni-las.

Mas existem momentos em que o grande trabalho da equipe médica, e a verdadeira salvação humana, residem apenas em aliviar o sofrimento.


FORÇA ESTRANHA é uma música de Caetano Veloso

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

JUVENTUDE TRANSVIADA

Uma gestante de 15 anos mantinha consultas regulares com a enfermeira de seu posto de saúde, para realização do pré-natal, sem maiores problemas. Era sua primeira gravidez, e ela se tratava de uma mãe solteira. A previsão inicial sugeriu que a gravidez tinha se iniciado no mês de março.

Em determinada consulta pré-natal, ela levou o ultrassom feito para avaliar o bebê e, aproveitando o momento, questionou:

"Queria ter certeza de quando fiquei grávida. Minha mãe e eu achamos que foi em fevereiro, e não em março"

Ela explicou que tinha se enganado antes, e em feveiro ainda tinha menstruação. A enfermeira, habilidosa, decidiu recalcular, sob o aviso:

"Isso faz uma diferença grande pra mim, doutora"

Enquanto examinava o ultrassom, a enfermeira questionou o motivo.

"A senhora sabe como é mulher solteira... Um dia fica com um. Outro dia, fica com outro. O namorado que eu tinha em fevereiro é diferente do que tinha em março. E eu não estou mais com nenhum dos dois"

Compreendendo a situação, a enfermeira perguntou:

"O namorado de março soube da gravidez?"

"Soube, e eu disse que era dele"

A enfermeira terminou de examinar a jovem mãe. E, diante das características da gravidez e do que mostrava o ultrassom, avisou:

"É quase certo que você tenha engravidado mesmo em fevereiro"

Preocupada, a garota se questionou do que fazer.

"Agora, você vai ter que avisar ao namorado de fevereiro que ele deve ser o verdadeiro pai. Você não precisa voltar a namorar com ele, mas ele tem que participar da gravidez"

"E o que eu faço com o de março?"

"Ele vai ter que entender a situação..."

Quando a garota saiu do consultório, deixou na enfermeira a dúvida se realmente contaria a verdade sobre a gravidez para alguém.



JUVENTUDE TRANSVIADA é uma música de Luiz Melodia
História gentilmente cedida por Lívia Barbosa

terça-feira, 30 de agosto de 2011

PRA DIZER ADEUS

Um paciente estava internado na UTI há quase oito semanas, por conta de uma infecção respiratória, que o obrigou inclusive a ficar intubado por 20 dias, sendo depois feita traqueostomia (colocar um tubo na garganta por meio do pescoço). Ele pegava infecção atrás de infecção, cada vez combatendo e vencendo, mas adquirindo outra logo após, até um ponto em que seu corpo começou a ceder.

Ele estava tão abatido por conta da doença, que nem tinha forças para falar ou respirar direito, sendo mantido sedado com medicações. E, embora a sedação não fosse tão forte, ele continuava sonolento, sem fazer contato com ninguém, como se estivesse em coma. A família já estava desesperançosa de sequer se despedir antes que o homem pudesse partir.

Certa tarde em que eu estava de plantão na UTI, a filha dele me contou sobre como o pai era forte, o quanto havia lutado na vida para formar os cinco filhos (ela, por exemplo, é advogada), mesmo sendo um homem que nasceu no sertão. Então, levou para que eu visse uma homenagem que os filhos e a mãe haviam feito para ele alguns meses antes, quando ainda estava completamente são.

O texto está na imagem, em anexo. Era um poema de Mário Quintana, que os filhos haviam colocado num formato bonito para homenageá-lo em vida. A advogada me contou, com um sorriso triste, que, sem sentimentos como era, o pai nem deu tanta atenção àquela homenagem. Mas significava muito para ela e os irmãos.

De fato, o poema era bonito. Após o horário da visita, quando tudo na UTI estava tranquilo, fui até o leito daquele paciente. Falei a ele, mesmo sem ter retorno algum, sobre a homenagem que a filha havia feito. Disse que ela tinha me dado o texto, então reli o poema que algum dia ele havia conhecido.

Uns 30 minutos depois, voltei ao leito para reavaliá-lo. Minha surpresa maior foi encontrar lágrimas em suas pálpebras. No dia seguinte, o paciente estava tão bem, que conseguimos tirá-lo do aparelho de ventilação mecânica. Como ele estava respirando sozinho, foi possível tirar a sedação por completo.

Na hora da visita, a família o encontrou sem sedação, respirando sozinho e, o que era incrível, ele estava ligeiramente acordado. Conseguiu até responder a perguntas dos familiares balançando a cabeça, olhou cada filho e esposa, e ainda esboçou um sorriso. Disse pra mim que estava bem e não sentia dor alguma.

Três dias após, o paciente infelizmente faleceu. Durante a noite, do nada, seu coração foi desacelerando até parar por completo. Depois de tanta luta, depois de tanto sofrimento, de certa forma ele descansou.

Existe uma lenda na medicina que diz que um paciente tem uma melhora importante dias antes de falecer. Alguns chamam isso de "melhora da morte". Outros acreditam que é uma forma de se despedir desse mundo. Qual seja a razão para tal, ao menos esse meu paciente teve a chance de ouvir da família o quanto o amavam por uma última vez.


PRA DIZER ADEUS é uma música de Titãs

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

PURO SANGUE

Um homem de 30 e poucos anos sofreu um acidente de moto, e acabou sendo levado inconsciente para um hospital de trauma, recebendo o devido atendimento inicial. Por sorte, não teve maiores problemas, e foi mantido com soro para hidratar e remédios para a dor.

Algumas horas depois de chegar ao hospital, o soro foi retirado de seu braço, mas não foi realizada compressão da veia, de forma que no local onde estava o soro começou a sangrar levemente. Em pouco tempo, o homem despertou sozinho e logo viu que estava deitado perto de dois outros pacientes. Não demorou também a notar o braço ensanguentado.

Os dois outros homens estavam acordados. Um, mais jovem, tinha sofrido uma fratura na perna. O outro, de meia idade, estava internado por qualquer outro motivo. O rapaz aproveitou, portanto, para saber o que tinha acontecido, pois não lembrava de nada. Perguntou o que estava fazendo no hospital e por que o braço cheio de sangue.

"Eles tiraram sangue do seu braço" explicou o homem de meia idade. "Eles fazem isso aqui. Tiram sangue e depois lhe pagam alguma coisa"

Dizendo isso, o homem retirou do bolso uma nota de cinquenta reais e mostrou, dizendo que tinha sido o pagamento. O acidentado na mesma hora se animou e disse que também queria o dinheiro dele. Começou a chamar todos os funcionários do hospital que passavam por perto, sempre questionando do dinheiro. Até que uma enfermeira resolveu parar para acudir o homem.

"Senhor, isso é alguma brincadeira. Ninguém recebe dinheiro aqui, não"

Depois que a enfermeira se afastou, o acidentado, confuso, olhou para o fraturado e perguntou:

"Ele está mentindo mesmo?"

E o fraturado respondeu:

"Claro que não. Também me pagaram"

E tirou do bolso um cheque. Aquilo foi o suficiente para o acidentado ficar louco, gritando para todos os lados que também queria receber o pagamento dele, que ninguém ia roubar seu sangue sem lhe pagar. A agitação foi tamanha, que o homem acabou tendo de ser amarrado à maca em que estava e, assim, passou todo o resto da noite: amarrado, imobilizado, mas gritando que exigia o dinheiro do sangue que havia dado.



PURO SANGUE é uma música de Charlie Brown Jr.

domingo, 7 de agosto de 2011

BAGATELAS

Algumas situações reais contadas como rapidinhas...

1.
Paciente - Doutor, desculpe vir ao hospital às 3h, mas é que eu estou com um problema.
Médico - O que houve?
Paciente - Já faz três dias que estou tendo sonhos.

2.
Às 2h da manhã, chega uma mulher de meia-idade à emergência.
Médico - Qual o problema, senhora?
Paciente - Eu estava dormindo tranquilamente. Só que eu perdi meu sono e queria entender o que houve.

3.
O homem acaba de ser medicado para hipertensão. Após explicações médicas sobre os remédios, vem a dúvida.
Paciente - Não estou entendendo. Você me pede pra tomar esse remédio enorme inteiro e o pequeno só a metade. Qual efeito esses remédios vão fazer?

4.
O médico discute sobre o diabetes descontrolado do paciente.
Médico - Senhor, sua glicose está em 500! Não está seguindo a dieta?
Paciente - Eu não como muito açúcar.
Médico - Mas a glicose não existe só em açúcar. Tem também a glicose das massas: do pão, do cuscuz, do bolo, do arroz, do macarrão.
Paciente - Como vinte pães por dia, dez de manhã e dez à noite. O problema deve ser esse, né?

5.
Paciente acaba de entrar no consultório da emergência.
Médico - Senhor, o que você tem?
Paciente - Você é o médico. Espero que você me diga.

6.
Consulta de rotina na pediatria.
Médico - Mãe, o que o garoto come no almoço?
Mãe - O normal. Arroz, feijão, carne...
Filho - COXINHA!

7.
Atendimento de emergência de uma garota de 15 anos com sangramento vaginal.
Médico - Senhora... Sua filha está grávida.
Mãe - Mas como, se ela nem mesmo menstruou!

8.
A pressão da paciente na chegada à emergência estava 200x140 mmHg.
Médico - Senhora! Você vem tomando as medicações certinho?
Paciente - Eu parei de tomar os remédios.
Médico - Por quê?
Paciente - Minha pressão controlou. Aí minha vizinha disse que podia parar e ficar tomando chá, que resolvia.



BAGATELAS é uma música de Frejat
(Agradecimentos ao médico THIAGO CORREIA pelas sugestões)

domingo, 31 de julho de 2011

NOS BAILES DA VIDA

Às 3h chegou à emergência um homem de 65 anos, sonolento, trazido por três mulheres de idades parecidas. Uma das mulheres se apresentou como companheira dele, e o levou para ser atendido, enquanto as outras esperaram fora do hospital.

A mulher explicou que o homem estava em uma danceteria com as três e, em certo momento, começou a sentir um mal-estar. Depois, quase desmaiou, quando então elas decidiram levá-lo para a emergência. A pressão estava muito baixa, o coração bem lento. Tomamos as medidas para acelerar mais o coração e aumentar a pressão.

Apesar de tudo que fizemos, o paciente continuava sonolento. Decidimos realizar um exame do coração, que veio com alterações. A conduta foi enviar o paciente para ser avaliado pelo cardiologista. Chamamos as três mulheres para explicar a situação e tomarmos as medidas para transferir o homem. Logo de cara, elas se desesperaram.

A mulher que entrara com o homem revelou que não era sua esposa. Disse que ela e uma das outras eram companheiras durante a semana, enquanto a verdadeira esposa e os filhos dele deveriam estar em casa, dormindo. Apenas a terceira não tinha relações com ele, era irmã de uma das duas, e vizinha do homem.

A preocupação delas é que, acompanhando o homem para o cardiologista, alguém decidisse contatar a família dele, e assim a esposa soubesse que ele estava com as três. Queriam evitar essa descoberta ao máximo. Após muita discussão, ficou decidido que a vizinha acompanharia o homem ao cardiologista, enquanto as amantes voltariam para casa, à espera de notícias.

Por volta das 6h, a vizinha voltou ao hospital sozinha, para nos contar que o diagnóstico final do homem foi a suspeita que tivemos - infarto. Ou seja, o homem infartou durante a noite de diversão com as três mulheres. Ela explicou que ele já estava bem, mas implorando para ninguém ligar para a tal esposa.

Em seguida, a vizinha fez a revelação final dessa aventura. Nenhuma das três outras mulheres sabiam, mas ela mantinha em segredo um caso com ele há quase uma década. Era a amante das amantes.




NOS BAILES DA VIDA é uma música de Fernando Brant

sábado, 23 de julho de 2011

ROLETA RUSSA

Chegaram à emergência um casal e outra mulher acompanhando. Todos jovens. Era madrugada, já passava das duas da manhã. A mulher era irmã da namorada. Logo de cara percebemos que a tal namorada estava com o rosto machucado. O namorado, abraçado a ela, estava muito ansioso, preocupado, explicou que a garota havia sido vítima de assalto e agressão física.

Os machucados não eram tão extensos. Além de um grande hematoma em um olho, tinha um corte na bochecha, por conta de um murro que havia levado. Cuidados dos ferimentos, suturamos esse corte e a deixamos em observação por algumas horas, já que havia sido vítima de trauma na cabeça. A irmã da garota nada falava, apenas acompanhava ela e o marido. A polícia chegou pouco depois; colheu o relato do casal e saiu da emergência em uns 10 minutos.

O hospital só permitia um acompanhante por paciente. A irmã dela, contudo, nos pediu para ficar também acompanhando. Como era madrugada, portanto a emergência estava vazia, acatei o pedido e deixei namorado e irmã com a vítima. Em torno de meia hora depois, pedi que uma enfermeira trocasse o soro da paciente. Logo após ela ir, a irmã da garota veio do repouso, um pouco transtornada, e foi para o lado de fora do hospital.

Quando voltou, a enfermeira contou que tinha visto uma conversa muito estranha entre o rapaz e a irmã. Ela dizia que não o deixaria a sós com a esposa, e ele exigiu que ela os deixasse sozinhos, que não teria problema. Então avisou: "Não abra a boca. Se você contar alguma coisa, vai se ver comigo". Logo em seguida, a viatura da polícia retornou.

Um policial me explicou que não tinha acreditado na história contada e foi até o local onde eles relataram ter acontecido a agressão, para averiguar. Havia um bar perto do local, e todos que estavam no bar contaram a verdadeira versão do caso - o próprio namorado havia batido na garota, após uma discussão motivada por ciúmes.

Os policiais chamaram o rapaz para conversar, e logo de cara contaram o que haviam descobertado. Obviamente, o garoto negou tudo, disse que nunca bateria na namorada, que era apaixonado e casaria com ela, e não teria motivos para bater na mulher que um dia seria sua esposa. Os policiais então foram conversar com a própria vítima, para ouvir sua versão.

A vítima confirmou todo o relato do namorado. Disse que havia sido assaltada, que os bandidos a agrediram, e ainda disse que nunca o namorado faria alguma coisa dessas com ela. Assim, os policiais, a contragosto, tiveram que aceitar essa versão, mesmo relatando a certeza de quem era o culpado.



ROLETA RUSSA é uma música de Adriana Calcanhoto

quarta-feira, 15 de junho de 2011

DENTRO DE MIM MORA UM ANJO

Um jovem casal de militares recebeu a maravilhosa notícia de que estavam grávidos. O processo de planejamento foi imediato e natural. Em poucas semanas, arrumaram parte de um enxoval, avaliaram os custos de reformar um dos quartos e procuraram o berço mais bonito.

Na época certa, a mãe realizou uma ultrassonografia para ver como estava o filho. E então veio a notícia ruim. Havia alguma coisa de estranho com a criança. Foram feitos alguns estudos, pesquisaram várias possíveis doenças no feto, e acabaram por definir o que tinha. Grande parte do cérebro da criança não existia. Não era o que se chama de anencefalia, porque havia ainda uma parte da massa encefálica, mas o volume era muito pequeno. A equipe médica logo de cara acreditou inclusive que seria incompatível com a vida.

A família desabou. A mãe, principalmente, entrou num progressivo estado de depressão, que só fazia piorar a cada semana. A sugestão médica inicial foi de que a gravidez deveria ser interrompida. O pai foi a favor do procedimento e de solicitar juridicamente o pedido de aborto, mas a mãe foi contra. Apesar de saber que as chances de vida eram mínimas ou nulas, queria seguir com a gravidez até o fim, e o pai acabou por concordar.

A gravidez prosseguiu sem grandes atropelos. Ao final do sétimo mês de gestação, nasceu prematuramente uma menina, que seria perfeita se não lhe faltassem quase 70% da massa cerebral. A primeira semana foi de tensão constante, e a equipe médica se revezou para manter a garota viva, necessitando de ajuda de aparelhos para conseguir respirar.

Mas ela ultrapassou a expectativa negativa. Mesmo sem boa parte do cérebro, mesmo com o pulmão pouco formado, sobreviveu à primeira semana de vida com força o bastante para atravessar muitas outras lutas. A garota não teve como deixar o hospital em momento algum. E, depois de estar completamente estabilizada, embora ainda ligada a máquinas para conseguir manter as funções de alguns órgãos, teve condições de sair da UTI e ficar em um apartamento dentro do hospital, onde poderia receber maiores cuidados da família.

Não conseguia deglutir o leite da mãe, sendo alimentada por sonda. Não conseguia se comunicar ou abrir os olhos ou emitir qualquer ruído, mas parecia sentir quando havia o toque dos pais, pois o corpo parava de se agitar e dormia tranquila.

A garotinha tem hoje quase quatro anos. Contra todas as possibilidades, continua viva e forte, crescendo no descompasso de seu organismo, ainda alimentada por sonda, ainda respirando por máquinas... Ainda amada pelos pais, que diariamente estão ali ao seu lado, com o mesmo toque de quando nascera e a mesma segurança do dia em que decidiram não parar a gestação.



DENTRO DE MIM MORA UM ANJO é uma música de Sueli Costa

terça-feira, 7 de junho de 2011

TENHO SEDE

Médico é acordado às duas da manhã para atender um paciente que chegou na emergência.
Quando entrou no consultório, deparou-se com um homem que parecia completamente sadio.

Médico: Boa noite. O que o senhor tem?
Paciente: Doutor... Eu vim porque estou com sede.
M: ... Com sede?
P: Sim, muita sede!
M: Desde quando o senhor está assim?
P: Foi agora de noite que atacou mais.
M: O senhor não bebeu água durante o dia, não?
P: Não... Trabalhei muito, só parei tarde. Esqueci de beber água.
M: E por que não bebeu agora?
P: Fiquei com medo de beber e ter alguma coisa.


...
[fatos reais]




TENHO SEDE é uma música de Gilberto Gil

segunda-feira, 30 de maio de 2011

MULHERES

Estava num desses plantões movimentados, atendendo a um homem que tinha sofrido atropelamento de bicicleta, quando chegou uma mulher perto de mim e murmurou:

"Doutor, será que você pode me atender?"

Não gosto quando estou atendendo um paciente e outro vem me interromper, porque me concentro em dar bastante atenção à pessoa. Por isso, na hora pedi para que a mulher esperasse eu terminar de atender e nem cheguei a lhe dar muita atenção. Mas ela não desistiu e disse:

"Mas doutor... É que eu estou sem meu dedo"

Aquilo foi o suficiente para eu deixar de lado o homem, que estava sem problema algum, e fosse ver o que havia acontecido com ela. E só então eu me dei conta que, na verdade, não era uma mulher, e sim um travesti. Continuei tratando como "senhora", porque ela própria disse preferir assim.

De fato, estava sem parte de um dos dedos. Vinha com a mão dentro de um saco cheio de gelo e, assim que eu me aproximei, tirou de dentro para eu ver. Metade do dedo indicador havia sido arrancado, ficando só o osso fraturado exposto para fora na pontinha que  continuou na mão.

Entrei em contato com o ortopedista para que a atendesse e tentasse resolver a situação. Questionei que acidente havia provocado aquilo. Então explicou: ela era garota de programa e, durante uma briga com outra, apontou o dedo para a rival, que prontamente pulou e lhe mordeu o dedo até arrancar da mão.


http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/foto/0,,14724945,00.jpgO ortopedista ao examinar decidiu de imediato tentar operar. A cirurgia durou uma parte da noite. Foram inúmeras tentativas de reimplantar o dedo à mão, mas nenhuma teve resultado efetivo, fosse pela demora para procurar socorro, fosse pela forma como o dedo tinha sido arrancado.

No pós-operatório, fui conversar com ela para explicar a situação. Ela aceitou bem e, chorosa, explicou que mentira para mim. De fato, o dedo havia sido arrancado por mordidas de outra travesti, mas na verdade aquela era sua melhor amiga, que havia lhe roubado um rapaz que era ótimo cliente, por quem a vítima era apaixonada. Ela finalizou dizendo:

"Ela já me roubou dinheiro, cliente, o namorado e agora tomou até meu dedo"

Naquele momento, eu vi que não tinha mais nada para falar que pudesse diminuir seu sofrimento. Dei meu apoio e preferi deixá-la absorver sua angústia até estar forte outra vez para seguir em frente.



MULHERES é uma música de Martinho da Vila

quarta-feira, 25 de maio de 2011

FÉ CEGA, FACA AMOLADA

Chegou à emergência uma paciente de 53 anos com problemas de visão que vinham se agravando nas últimas semanas. Contou que começou como visão dupla, mas depois os olhos foram realmente escurecendo até desaparecer por completo de um lado e parcialmente no outro. Referia também algumas dores de cabeça que apareciam diariamente, mas nada que a impedisse de fazer suas atividades.

A neurocirurgia foi logo contactada. Realizaram exame físico completo na paciente e identificaram mais alterações neurológicas, que imediatamente preocupou a equipe. A paciente foi levada no mesmo dia para realizar uma tomografia computadorizada de crânio.

Assim que saiu o resultado, logo ficou definido o motivo para a doença: a paciente estava com um grande tumor de crânio, provavelmente maligno por seu aspecto, acometendo uma parte do cérebro, e dessa forma afetando a visão, causando a dor de cabeça e as demais alterações.

Para não perder mais tempo, a neurocirurgia logo definiu uma data para realizar um procedimento cirúrgico em que pudesse extrair o tumor e diminuir seus efeitos danosos, para posteriormente realizar quimioterapia.

Embora tudo parecesse muito certo, um grande empecilho surgiu. Assim que soube da certeza de cirurgia, a paciente avisou: "Eu sou testemunha de Jeová". A informação foi o bastante para apavorar a equipe por razões óbvias. Os discípulos do dogma chamado Testemunhas de Jeová tem ensinamentos rígidos no que diz respeito aos cuidados de saúde. Uma das grandes proibições, que preocupa sempre os médicos, é que um testemunha de Jeová não pode, sob qualquer hipótese, receber tecido orgânico de outro ser humano.

Isso significa dizer que não podem receber qualquer tipo de transplante ou transfusão sanguínea. Nesse caso, a paciente certamente precisaria de reserva para transfusão, já que seria uma cirurgia cerebral, correndo riscos de receber sangue. Mas ela imediatamente se recusou. Não aceitaria de forma alguma receber sangue de outro ser humano. Segundo ela, "Se Deus me quer doente, Ele sabe o que faz. Se for para me curar, Ele arranjará um jeito".

Foram inúmeras as tentativas de dissuadi-la da idéia, mas ela se manteve irredutível. Só faria a cirurgia se não recebesse qualquer transfusão, do contrário processaria todo o serviço médico. Nenhum cirurgião também se arriscaria em operá-la sem a certeza de poder transfundir. Existem duas formas de resolver isso: a auto-transfusão e o uso de transfusão sintética.

A transfusão sintética usa sangue produzido em laboratório, não vem de outro ser humano. Tem grande risco de complicações, mas solucionaria o caso. O problema é que ainda é fora da realidade brasileira, ainda mais no SUS. A auto-transfusão seria retirar pequenos volumes de sangue da própria paciente e ir guardando até ter a quantidade necessária disponível. Isso demandaria muito tempo, o que não resolveria a urgência dela.

Por maiores que fossem os apelos da equipe de neurocirurgia, nada mudou a situação. A paciente decidiu que seria mais importante para seu espírito não receber o tratamento cirúrgico e morrer em paz com suas crenças. Dessa forma, a equipe se viu obrigada a lhe dar alta no terceiro dia de internamento, com as mãos atadas, sem muito o que fazer. O processo de auto-transfusão foi iniciado mas, ao cabo de duas semanas, as queixas pioraram, a visão do outro olho já estava quase perdida. Com quase 45 dias da admissão à emergência, a paciente foi a óbito, mantendo-se convicta de sua fé.



FÉ CEGA, FACA AMOLADA é uma música de Milton Nascimento

sexta-feira, 20 de maio de 2011

DE CONVERSA EM CONVERSA

Médico vai realizar a conversa inicial com uma paciente idosa.
Médico: A senhora tá tossindo?
Paciente: To não.
M: Mas tem catarro?
P: Só quando tusso.
M: Mas a senhora disse que não tá tossindo!
P: Eu tô sim.
M: ... Tá ruim pra respirar?
P: Tô respirando, sim.
M: ... Tá com dor no peito?
P: Estou.
M: Onde é a dor?
P: Aqui! (aponta para a barriga)
M: ... Tá urinando normal?
P: Estou. Xixi e cocô normal.
M: Que bom! E tem comido?
P: (nojo) Não, eu nunca como, não!
M: ...

[fatos reais]
 
DE CONVERSA EM CONVERSA é uma música de João Gilberto 

quarta-feira, 18 de maio de 2011

PAIS E FILHOS

Esse caso já foi postado antes no antigo formato, e estou remodelando ao atual...

Deu entrada na emergência um adolescente de 15 anos, obeso, acompanhado dos pais, queixando-se de dores fortíssimas na boca do estômago. Quando examinado, a dor era muito intensa em toda a parte superior do abdome, principalmente na região do estômago. Não sentia queimar, não tinha coisas que melhorassem ou piorassem.

Pela forma da dor, a principal hipótese inicial para ele foi de uma COLELITÍASE, que é o quadro de cálculos (pedras) na vesícula biliar. É raro na infância, mas poderia encontrar justificativa no peso elevado dele. O garoto foi internado para investigação e medicação para diminuir a dor. Solicitamos uma ultrassonogradia e uma endoscopia (mas essa demoraria para ser feita).

Logo no primeiro dia de internamento, ficou claro que não seria fácil diminuir o desespero dele. Mesmo com medicações analgésicas fortes, o garoto continuava a rugir de dor. O mais interessante, porém, é que ele ficava tranquilo em alguns períodos do dia, enquanto em outros passava horas e horas chorando e gritando.

Uma técnica de enfermagem muito astuta percebeu algo além e matou a charada. O garoto não parecia sentir dor e até brincava com outras crianças nos momentos em que não havia equipe médica por parte. E também quando a mãe estava fora. Bastava a mãe entrar na enfermaria, que ele começava a chorar e a gritar de dor.

Na manhã do terceiro dia de internamento, ele fez uma ultrassonografia, que descartou a hipótese de cálculos na vesícula. Então, até aquele momento, nada justificaria tanta dor. Na tarde daquele dia, a equipe médica decidiu fazer novo exame no garoto, enquanto a mãe estava fora. Ele reclamou que a barriga doía, mas estava bem. De repente, a mãe chegou. Então, o adolescente começou a gritar de dor e a chorar. A mãe também chorou, desesperada, aumentando a gritaria dentro da enfermaria por parte dos dois.

A decisão da equipe médica foi óbvia - o garoto estava fingindo ou, pelo menos, exagerando na dor. Apostamos então no conhecido tratamento placebo: na hora da crise dolorosa, fizemos uma infusão de apenas água direto na veia, fingindo que administrávamos medicação. E a dor do garoto melhorou.

Estávamos prontos para dar alta ao garoto com o diagnóstico de TRANSTORNO FACTÍCIO e acompanhamento pela psicologia para toda a família, em especial a mãe.
No dia da alta, ele foi levado para realizar a endoscopia já marcada. Quando voltou, o resultado surpreendeu a todos. Havia, no estômago, DUAS GRANDES ÚLCERAS, que justificavam por completo a dor intensa que o garoto tinha.

Portanto, seu diagnóstico final e efetivo foi de ÚLCERAS GÁSTRICAS, embora obviamente o menino tivesse uma influência negativa materna muito grande para lidar com a dor.




PAIS E FILHOS é uma música de Legião Urbana.

sábado, 14 de maio de 2011

DESALENTO

Certo dia, na emergência, entrou timidamente no meu consultório uma mulher de 40 e poucos anos.
Pedi que sentasse e, quando ela o fez, perguntei o que estava sentindo.
Ao invés de responder, a paciente colocou a mão no bolso da calça, apanhou de lá um papel. Desembrulhou com todo cuidado e me estendeu, ainda sem dizer nada.
Segue abaixo a imagem da folhinha que eu li.



Devo admitir duas coisas:
1. Deu vontade de rir na hora. Não rir da paciente ou dos erros, mas pela sua ingenuidade, pela forma quase que pura com que escreveu tudo que sentia naquele momento, e foi ao médico com seu papelzinho de queixas. Achei muito bonitinho hehehe
2. Na hora em que li, tive dificuldade para entender algumas palavras. Mas, depois, com calma, compreendi. Se tiverem dúvida em alguma, perguntem!

Para finalizar, o diagnóstico da paciente não tinha nada a ver com o que ela escreveu, e ao mesmo tempo tinha tudo a ver. Ela era uma paciente poliqueixosa, que sentia alguma coisa em todo lugar do corpo, pelo simples fato de que estava sofrendo de um profundo TRANSTORNO DE ANSIEDADE GENERALIZADA. Mediquei com um remédio para cortar a ansiedade e, em meia hora, a paciente estava se sentindo muito melhor.




DESALENTO é uma música de Chico Buarque.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

ATÉ O FIM

Uma senhora de setenta anos chegou para se internar no setor de cirurgia, acompanhada do carinhoso marido de mesma idade. Ela vinha para se submeter a uma cirurgia eletiva de vesícula (colecistectomia) por conta de pedras que vinham lhe causando várias crises de dor.

Inicialmente, tivemos a óbvia preocupação: era uma paciente idosa, o que aumentava seu risco cirúrgico. Mas o cardiologista nos tranquilizou que ela poderia se submeter ao procedimento por vídeo sem maiores problemas. No dia do internamento, o marido veio até a mim sem que ela soubesse e pediu:
"Doutor... Nos amamos muito. Por favor, não deixe que eu fique sozinho, não vou conseguir ficar só"

Eu o acalmei e disse que faríamos o melhor para ela ficar bem. E falava sério.
Ela foi operada no mesmo dia. Sua cirurgia transcorreu sem maiores dificuldades. Naquela tarde, quando ela ainda estava no setor de recuperação, o marido passou mal na enfermaria. Quase desmaiou, por conta de uma dor importante que sentia perto do estômago. Não era uma dor nova, mas ele tentara diminuir e esconder ao máximo durante os últimos meses.

Internamos o homem para ser investigado enquanto sua esposa continuava na recuperação. Fizemos um ultrassom, que logo mostrou o que ninguém queria ver... O carinhoso marido da paciente tinha uma tumoração importante no fígado. Ele então nos contou que sentia dores há bastante tempo e vinha perdendo peso nos últimos meses.

Decidimos seguir com a investigação realizando uma biópsia do fígado para identificar a causa do tumor.
Consegui marcar para o dia seguinte pela manhã. E assim foi. Na manhã seguinte, levamos o homem para realizar a biópsia. Durante o procedimento, o médico intervencionista reclamou da dificuldade em biopsiar o fígado, pois a lesão era muito friável. Isso significa dizer que já estava tão avançada, que o próprio fígado estava bastante destruído e se desintegrando com a tentativa de biópsia.

No início da tarde, quando levamos o homem para a enfermaria, sua esposa havia retornado da recuperação, muito bem. Eles ficaram deitados lado a lado, trocando palavras carinhosas.
Esse momento não durou muito. Coisa de duas horas depois, a paciente submetida à cirurgia no dia anterior veio correndo me chamar... Seu marido estava passando muito mal.
Quando fomos examiná-lo, a situação era grave. O homem estava desacordado, pálido, suando em bicas. Sua pressão havia despencado, quase não tinha pulso.

Foi levado às pressas para a sala de cirurgia. Aberta sua barriga, descobrimos que o fígado estava com hemorragia importante. A lesão era tão friável, que a biópsia tinha sido o bastante para causar o sangramento. Complicação RARA, mas possível, ainda mais num fígado tão destruído pelo tumor. Foram duas horas de cirurgia tentando resgatar o paciente. Mas não conseguimos. Ele veio a falecer no final daquela tarde em que tudo deveria ter acontecido bem, a poucas horas de sua esposa receber alta. Faleceu contra todas as regras pelo infortúnio de um câncer hepático avançado, por esconder os sintomas durante tanto tempo. O tipo de situação que nos torna impotentes dentro da medicina.



ATÉ O FIM é uma música de Engenheiros do Hawaii

quarta-feira, 27 de abril de 2011

A OUTRA

Um paciente de 55 anos deu entrada na emergência com uma queixa bem simples:
"Doutor... Há uma semana, quando eu tive relação com minha namorada, fez uma feridinha no pênis... E essa feridinha veio crescendo nos últimos dias".

O que, inicialmente, pode parecer uma bobagem requer do médico que trabalha em emergência muita atenção. O volume de pacientes é grande, muitas vezes não há como realizar uma anamnese completa, mas não se pode deixar a medicina prejudicada.

Nessa situação, a minha primeira atitude foi definir o que exatamente era feridinha. Questionei se era como um arranhão ou um furúnculo. Questionei se houve febre, se apareceu íngua ou se saiu alguma secreção do pênis. Perguntei se a lesão doía. Ao me sentir mais à vontade, perguntei se a relação sexual tinha sido protegida e há quanto tempo eles estavam juntos.

O homem timidamente respondeu que, sim, havia aparecido íngua dos dois lados da virilha, mas não teve secreção saindo da uretra. A feridinha começou como um arranhão mas tinha formado um caroço, que não doía. Também não houve febre. E aquela garota com quem estava era namorada dele há 2 anos. Não usavam camisinha, pois eram muito fiéis um ao outro.

Fui examinar o homem. De fato, havia uma lesão ulcerada na glande, medindo uns 3cm, bem delimitada. Ao toque, a lesão não era dolorosa. Havia íngua nas duas virilhas, também indolor.

Questionei ao homem se ele teve relação desprotegido com mais alguém além da namorada. Então, ele respondeu:
"Também tenho relação sempre com minha esposa sem camisinha"

Expliquei ao homem que aquela lesão era típica da SÍFILIS PRIMÁRIA, também conhecida como CANCRO DURO. O cancro duro aparece como uma ferida única e indolor no corpo do pênis ou na glande, associado a aumento de linfonodos inguinais (as ínguas) e sem sinais de uretrite. Expliquei que era uma doença transmitida sexualmente por conta de uma bactéria, o Treponema pallidum, e felizmente era tratável. Prescrevi penicilina benzatina e orientei 10 dias de abstinência sexual ou, pelo menos, em uso de camisinha.

O homem não me questionou nada mais. Só que, por sua expressão, deu para imaginar que estava se questionando de quem era a culpa.



A OUTRA é título de uma música de Los Hermanos

BLOG REMODELADO

Esse blog está sendo completamente remodelado. A partir de agora, ele não tratará diretamente de doenças clínicas e sua avaliação médica, e sim mostrará relatos de situações vividas na prática médica, focando na história do paciente como um indivíduo.
Algumas histórias serão engraçadas, enquanto outras trarão relatos tristes ou simplesmente humanos.